quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Ribeira do Amparo na Revista Época

O PACIENTE 205

Ele passou 12 anos internado. Sem nome, sem documentos, sem memória. Agora foi resgatado. Quantos mais vivem à espera de uma família? 

por CRISTIANE SEGATTO

O homem da foto acima sofreu um acidente vascular cerebral (AVC). Quando, onde e como, ninguém sabe. Perdeu os movimentos do lado direito do corpo, a fala, a história e a cidadania. Sem memória e sem documentos, virou um número. Tornou-se o paciente 205. Assim foi registrado no site que a Secretaria Estadual de Saúde mantém na internet para tentar descobrir a identidade de doentes esquecidos nos hospitais.
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Os últimos 12 anos ele passou no Centro Especializado em Reabilitação Dr. Arnaldo Pezzuti Cavalcanti, um antigo leprosário que ocupa uma área verde de 330.000 metros quadrados no município paulista de Mogi das Cruzes. Várias alas são destinadas a pessoas que precisam ficar internadas por muito tempo. Ou, simplesmente, não têm para onde ir. É o caso dele. Em dezembro de 1998, estava internado num hospital público da Zona Leste paulistana. O hospital foi desativado, e o desconhecido foi levado para o Pezzuti. “Ele chegou sem prontuário. Os dados do atendimento que recebeu foram perdidos”, diz a assistente social Marilene Moreira Feliciano. As impressões digitais foram colhidas pela Secretaria de Segurança, mas não puderam ser comparadas a nada. “Os arquivos antigos de RG não estão digitalizados”, diz Marilene.
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Sem falar, o paciente começou a fazer reabilitação, 12 anos atrás. Passou por sessões de fisioterapia e por acompanhamento médico e psicológico. Depois de três anos, disse uma única e preciosa palavra: Juarez. Mais 12 meses foram necessários até que dissesse o dia de seu aniversário. Por muito tempo embaralhou o mês e o ano. Misturava cenas do presente e do passado. Dizia que morava em Mogi das Cruzes, na Bahia, em São Paulo. Em 2009, conseguiu se lembrar de seu nome completo e da data de nascimento. Disse também que havia nascido em Barrocas, na Bahia. As assistentes sociais procuraram vários cartórios e, depois de muito esforço, conseguiram reconstruir sua identidade e localizar a família.
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Juarez de Jesus Batista tem 59 anos. Nasceu no povoado de Barrocas, em Ribeira do Amparo, uma cidade de 14 mil habitantes no nordeste baiano. Veio para São Paulo há mais de 40 anos. Não se lembra da mãe. A mãe nunca se esqueceu dele. Aos 82 anos, dona Josefa mora com uma filha e uma neta na mesma cidadezinha. Passou duas décadas sem ouvir notícias do filho. Sempre achou que ele tivesse sumido no mundo por sua culpa. Quando já morava em São Paulo, Juarez pediu à mãe que encontrasse uma noiva para ele na Bahia. Juntou dinheiro, comprou as alianças e, meses depois, estava de volta para pedir a moça em casamento. Tarde demais. Ela havia se casado com outro. Desiludido, foi embora e deixou de dar notícias. Dona Josefa nunca se perdoou por não ter conseguido “segurar” a moça.
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Ao saber que voltaria para a Bahia, Juarez chorou. Não foi de felicidade. Tinha uma preocupação de ordem prática: como poderia usar o buraco que substituía o banheiro se hoje vive numa cadeira de rodas? Além disso, nos 12 anos de Pezzuti, fez amigos e encontrou a fé. Agora enfrentará uma nova ruptura emocional. Em frases curtas, entrecortadas por longas pausas, dá um recado lúcido:
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“Aqui converso. Gosto de capinar os matos. Com a mão esquerda. Meu lado direito não funciona. Não sei da família. Tô assustado de ir morar com quem não conheço. Era prensista. Inspetor de qualidade. Fazia bico. De eletricista. Em São Paulo. Não tinha mulher. Nem filhos. Tive uma mulher. Ela foi embora. Tudo aqui é bom. Os pacientes. A comida. Os funcionários. São legais os enfermeiros. É bom ficar aqui ao ar livre. É triste ir embora. Não é bom morar na roça. Gostava de São Paulo. Agora não sei como vai ser a vida. Penso em Deus. Fui batizado há nove anos. Congregação Cristã do Brasil. Assisto a culto todo domingo. Na igreja sinto a alma. A alma da gente fica legal. Conforta a gente. Tenho a Bíblia. É difícil ler. Demora pra ler. Mas o que ouço fica na lembrança”.
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Na Bahia, a família chorou de emoção quando soube que Juarez voltaria. Dona Josefa pergunta todos os dias quando, afinal, ele vai chegar. “Vamos recebê-lo de braços abertos e enchê-lo de carinho”, diz a sobrinha Sonia Batista de Jesus Silva, de 33 anos. Ela trabalha como vendedora autônoma de produtos de beleza e se lembra muito bem do tio. “Quando eu tinha 7 anos, ele disse que na volta de São Paulo me traria uma boneca daquelas que falam”, diz. O brinquedo nunca chegou.
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Juarez vai morar com a mãe. A casa tem água encanada, banheiro, privada e piso de cerâmica. Esgoto ainda não tem. Mas tem TV, aparelho de som, celular, liquidificador. A segunda via do RG já chegou. Falta só o CPF para que ele possa viajar. É quase um final feliz, raro para pessoas na situação de Juarez.
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Nem sempre os pacientes são aceitos pela família. Muitos permanecem internados sem que haja razão médica. O atendimento que recebem nos hospitais poderia ser dado fora deles. Internados, correm risco de contrair infecções. Também se isolam da sociedade. “Oito em cada dez pacientes daqui não precisam de internação”, diz a enfermeira Solange Beatriz M. de Mello, responsável pela ala de reabilitação do Pezzuti. “Isso é o que podemos chamar de internação social.”
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No site da Secretaria Estadual de Saúde, há 80 pacientes não identificados. A maioria tem transtornos mentais ou psiquiátricos. Ou é gente que sofreu um acidente de trânsito ou um AVC e perdeu a memória. O cadastro existe graças à iniciativa dos assistentes sociais. “Isso é só a ponta do iceberg. Quantas pessoas não devem estar internadas sem identificação nos tantos hospitais do Estado e do Brasil afora?”, diz Ricardo Tardelli, coordenador estadual de Saúde. O caso de Juarez revela que o empenho dos assistentes sociais reconstrói histórias. E, possivelmente, vidas.
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